Palcos, Escritos & Videotape — PT. IX: Ai, Aydée
Venho há algum tempo alimentando a vontade de escrever sobre letras bastante peculiares — aquele tipo de música que quase sempre é elencada como “lado B” ou tida como uma obra menor de um artista. Quero expandir o contexto em que essas músicas estão situadas, criando histórias onde acredito que elas devam ser contadas. Esse tipo de música sempre me fascinou: existem nelas mundos, sentimentos e situações incomuns — o que, pra mim, é um grande barato.
Pra começar essa série, que não sei onde vai dar, trago "Ai, Aydée", da dupla Bosco e Blanc, contida no LP Linha de Passe. O disco é normalmente considerado de “segundo escalão” da dupla — o que, na minha opinião, é um disparate. Nele há várias composições inteligentíssimas, como Aydée, que é um dos textos de que mais me orgulho de ter escrito.
Espero que gostem e apreciem o texto e a composição.
[INÍCIO]
Toquei a campainha e aguardei até alguém vir me receber, e alguns instantes depois, já conseguia ouvir os passos se aproximando da porta. Vi uma sombra indecifrável parada do outro lado, provavelmente me observando através do olho mágico. A maçaneta girou, a porta fora calmamente aberta.
Era Aydée, tão sorridente quanto quem espera um grande amor, o que no caso, ao menos por parte dela, era verdade.
Vestia um elegante vestido branco, ideal para reuniões familiares e eventos que exigem o máximo de descrição e boas maneiras. Infeliz ou felizmente, tais práticas não eram praticáveis em minha mente, onde, já me imaginava com a cara enfiada debaixo do vestido.
Me convidou para entrar, pegou meu casaco e o pendurou em um cabideiro ao lado da porta. Antes que eu pudesse cumprimentá-la, olhou agilmente para trás, notou que não havia ninguém por perto, e me deu um beijo tão rápido que fora quase imperceptível, como se temesse que alguém pudesse ouvir o estalo de nossos lábios se separando.
— E como vai você? — Disse Aydée, em tom suave. Seus olhos pulsando com a excitação provocada pelo beijo.
— Estou ótimo. Cheguei muito cedo? — Perguntei para saber o quanto tudo aquilo poderia durar.
— Não, não… minha avó chegou há uns 10 minutos atrás. Meu pai ainda nem pegou o brandy. — Me respondeu com ótimo humor, provavelmente estava se divertindo com tudo aquilo.
— Pois bem… e onde estão todos?
— Estão na sala de estar, me acompanha?
— Com todo o prazer.
— Sei que você é envergonhado, por isso juro que não farei nada para te constranger. Nem deixarei que falem ou perguntem qualquer coisa fora de tom. Eu prometo.
— Agradecido. — Como pode ela, tão jovem, tão meiga, estar apaixonada por mim? Se ela soubesse o quão desnecessário acho essa aproximação de sua família, certamente se surpreenderia, mas também não estaria comigo. Aceitei tudo isso unicamente para levá-la para cama formalmente, para que o restante do meu corpo possa enfim estar onde apenas meus dedos já estiveram.
Do corredor, já podia se ouvir o burburinho e algumas risadas na sala de estar. Aydée me pegou pela mão e adentramos.
— Pessoal, esse aqui é o Aldir, meu err.. amigo… — Falou em alto e bom som, não que precisasse, pois me parecia que minha chegada ansiava a todos.
— Aldir! Seja bem vindo, menino. Como vai você? — Disse uma senhora que se aproximou de mim rapidamente. Provavelmente era sua mãe, havia legítimos traços de sua beleza herdados no rosto de Aydée. Por certeza era tão bela quanto a filha quando ainda era moça. Me pegou gentilmente pelo braço e me levou à cada um dos membros da família.
— Esse é o Carlos, meu marido, pai da Aydée. — Era um senhor alto com cabelos escuros e um bigode vasto, porém bem aparado. Vestia um elegantíssimo terno amadeirado. Estava sentado em uma poltrona que, de forma discreta, o destacava como chefe familiar. Se tudo isso se passasse alguns séculos atrás, estaria sentado em um trono. Levantou-se de bom grado e apertou minha mão com firmeza, não o suficiente para me machucar ou passar um recado, mas com a precisão de um relógio suíço, e aquilo já dizia muito sobre o que eu poderia esperar.
— Como vai, Aldir? Estávamos todos ansiosos para conhecê-lo, pelo menos eu estava. Desde que você confirmou o convite ontem a tarde, Aydée não parou de caminhar pra lá e pra cá nessa casa. Só não caminhou pelas paredes, porque não é aranha.
— Papai! — Como uma daquelas ironias que só nos são apresentadas em uma gostosa caminhada pela vida, Aydée havia ficado constrangida antes que eu, seu convidado.
— Está tudo bem — falei em tom apaziguador. — Sei que o Senhor Carlos está apenas brincando.
Na verdade, sabia que havia sim um fundo de verdade na fala do pai dela, sabia que aquela pequena estava doida para me ver há um bom tempo, por isso fui estrategicamente recusando seus convites, para que quando viesse, estivesse tão indefesa quanto um pardal diante do falcão.
— Aydée, minha querida, estamos apenas brincando. Quero que Aldir se sinta bem em nossa casa. Me diga Aldir, já foi convidado para jantar na casa de muitas namoradas? — Perguntou seu pai de forma bem-humorada, mas ao mesmo tempo tentando jogar uma isca cuidadosa, plantar uma armadilha para que, mais cedo ou mais tarde, eu me enrolasse. Foi uma boa tática, tão boa quanto aquele bispo astuto na lateral do tabuleiro de xadrez, aquele que você normalmente não se dá conta do quão fundamental é para chegar ao objetivo final do jogo. Só havia uma coisa que ele não previra, eu não subestimo peões, quem dirá, bispos.
— Na verdade, senhor Carlos, namorei pouquíssimo nos últimos anos. Estive envolvido em árduos trabalhos no escritório de advocacia de meu tio. Estou criando gosto pelo ofício, irei me formar no colegial no ano que vem, e estou pensando em cursar direito em Coimbra. — Xeque-mate, pensei comigo mesmo.
— Coimbra? Espetacular, meu jovem, espetacular. — Xeque-mate, afirmei comigo mesmo.
Enquanto o pai de Aydée repetia consigo mesmo as palavras “escritório”, “direito" e “Coimbra”, sua mãe continuou com a rodada de apresentações. Agora era a vez da Avó, uma senhora muito enrugada e sentada em uma pequena poltrona próximo à janela. Não esperei que se levantasse pois parecia um tanto debilitada. Chegamos perto dela.
— Essa aqui é minha sogra, a Vovó Judith. Ela normalmente não nos ouve muito bem, por isso fale pertinho e claramente, ok?
— Ok.
— Vovó, Vovó Judith, a senhora me ouve? — Disse a mãe com delicadeza.
— Não ouço tão bem quanto gostaria, mas enxergo com facilidade. E estou vendo um belo rapazinho, é ele o tal Aldir? — Perguntou a velhinha também em tom delicado.
— É sim, vovó, ele irá nos acompanhar no jantar de hoje, o que acha?
— Acho ótimo, assim minha neta consegue aquietar o facho. Já estava ficando zonza de vê-la andar pra lá e pra cá o tempo todo. — A velha lançou uma frágil gargalhada assim que acabara sua fala. E Aydée, que a essa altura já estava corada do outro lado da sala, revirou os olhos como quem tenta aparentar o contrário do que havia sido dito.
— Venha meu jovem. Pegue a benção. — Fez um sinal de concha com as finas mãos e eu, cautelosamente, posicionei minhas mãos por entre as dela.
— Você conhece as boas tradições. Isso está em falta nos jovens de hoje. — A avó esboçou um sorriso de satisfação.
— Você tem origem estrangeira, meu filho? — Continuou a idosa.
— Na verdade não. — Respondi — Sou apenas um brasileiro, um brasileiro de talento…
— Está bom também — Riu a velhinha — Vá, vá dar um gostoso beijo na minha neta.
— Não, minha senhora — Respondi da boca pra fora — Fico encabulado com essas situações. — Fitei Aydée com o canto do olhar e a vi corar ainda mais após a minha fala. Teria aberto um sorriso discreto? Acredito que sim, um sorriso como aquele era o mesmo que água no deserto, uma água que mais cedo ou mais tarde eu iria mergulhar.
— Aceitaria um café? — Perguntou a sua mãe, agora me direcionado para uma nova etapa do rodízio de apresentações.
— Aceito sim — aceitaria até veneno em troca de uma noite com sua filha, pensei.
— Asyéne, traga uma xícara para o Aldir. — Disse a mãe imediatamente.
— Prefere com açúcar, Aldir? — A irmã me perguntou enquanto vinha de encontro à mim. Provavelmente, dois ou três anos mais jovem que Aydée. Asyéne, já desabrocha sua beleza tal qual a irmã, com exceção do nariz, que não foi desenhado tão graciosamente quanto sua irmã mais velha.
— Sem açúcar, obrigado.
Asyéne preparou uma xícara de café, a pôs em um pequeno pires e me entregou cuidadosamente.
— Obrigado.— Agradeci.
Enquanto bebericava, percebi que havia apenas uma pessoa a qual ainda não havia sido apresentado, outra moça sentada em uma cadeira próxima a Aydée. Olhares e cochichos confidentes eram trocados entre elas. Era uma amiga da escola, não recordava seu nome e nem julgava isso como empecilho para meu objetivo final. Apenas mais um joguete, uma peça sobressalente do tabuleiro que só é posta em jogo quando, por acidente, se perde uma das outras peças, o último e menor obstáculo. A essa altura só me intrigava o que Aydée já havia contado a ela. Acredito que a última visita que meu indicador havia feito a seu pequeno, pulsante e intocável campanário, rendeu boas conversas entre suas amigas. Deixei o café no aparador próximo à janela e me dirigi até ela.
— Muito prazer — Estendi a mão para cumprimentá-la.
— Atchiiim! — a garota espirrou diretamente na minha mão. Um espontâneo e desajeitado espirro, que me deixou desorientado por alguns instantes.
— Me chamo Aldir — Me apresentei um pouco espantado, enquanto pegava um lenço que estava no bolso — Saúde — concluí tentando manter o bom humor para não constrangê-la.
— Desculpe… obrigada.
Aquela situação acabara sendo inesperadamente benéfica para mim. A família inteira gargalhou e fui elogiado por manter a compostura. No final, me juntei ao coro e também dei boas risadas.
— Rir de si mesmo também é uma boa virtude, não acha, Aldir? — Disse seu Carlos se levantando da poltrona e indo até o bar.
— Assino embaixo — respondi observando atentamente enquanto ele pegava duas taças para servir o brandy. Aydée, em outra ocasião, havia me contado despretensiosamente que seu pai sempre bebia brandy quando estava na presença de amigos. Até onde sabia, os demais membros da família não bebiam, o que significava que aquela segunda taça só poderia ser minha. Outro troféu conquistado em apenas uma hora.
— Sei que você é jovem, Aldir, mas não vai me desapontar negando uma boa dose de Brandy, não é? — Veio ele em minha direção.
Fiz uma ágil leitura da sala, a mãe parecia positivamente surpresa com o convite do seu marido, o que era bom para mim, odiaria ter que recusar a bebida para agradá-la e acabar afligindo Carlos, e vice e versa. Aydée estava nitidamente contente com a situação. A avó estava distraída, provavelmente perdida em seus próprios pensamentos.
— É claro que aceito — Fiz questão de responder com firmeza suficiente para não parecer um total principiante no mundo etílico — Não é sempre que bebo, mas um Brandy de tamanha qualidade, não pode ser recusado, não é mesmo?
— HAHAHA eu penso exatamente igual, meu jovem. Embora, no meu caso, não sejam poucas as vezes em que bebo HAHAHA — Replicou ele com uma larga e descansada gargalhada.
Peguei a taça, e antes de poder dar o primeiro gole, observei que era feita de cristal de altíssima qualidade, com as iniciais da família impressas em ouro na lateral. Indubitavelmente um tesouro guardado a gerações pela senhora sentada próximo a janela. Uma tradicional família e esperando por um pretendente à altura de sua adorável filha. Dei um belo gole inicial para assegurar minha experiência diante de seu pai.
— Apreciar uma boa bebida também é uma virtude, o senhor não acha? Eu… um brasileiro de virtude.
— Concordo plenamente, Aldir. E digo mais, você está se mostrando mais interessante do que jamais imaginávamos, não é meu bem? — se voltou para sua esposa.
— É verdade. Estávamos um pouco apreensivos sobre como seria o tal amigo de Aydée, mas agora já me sinto mais tranquila. Você é um rapaz bem educado, e que almeja as coisas boas da vida — mantive o máximo de contato ocular com a mãe, para mostrar um lado compreensível e comprometido com todos os elogios que ela me destilava, só era uma pena ela não conseguir imaginar que na verdade as boas coisas da vida, para mim, estavam sob as vestes de sua filha. — Mas acho que já falamos, você já deve estar com fome, não é? Venha, preparamos um jantar especial. Vamos todos à sala de jantar.
Aos poucos fomos nos encaminhando à sala de jantar. Fiquei onde estava para terminar o brandy, notei que Aydée estava radiante quando passou por mim. Se estivéssemos em qualquer outro lugar, teria agarrado-lhe alí mesmo.
O tempo foi passando sem a menor pressa durante o jantar. Nos reunimos todos em uma elegantíssima mesa e fomos servidos pelos serviçais da família. Elogiei a comida, troquei risos com todos, discutimos sobre política, trabalho e até mesmo música.
— Eu gosto muito desse jovem que se apresentou na Excelsior semana passada — Disse seu pai enquanto mantinha um olho em seu filé e o outro em mim.
— Aaa senhor Carlos, Roberto é um ídolo para mim — disse isso com curiosa franqueza. Roberto é realmente um dos meus ídolos.
— Deve ter muitas pretendentes ao seu redor, meu jovem — dessa vez foi a avó afirmando inocentemente.
— Muito pelo contrário, minha senhora — eu estava enganado, o verdadeiro xeque-mate seria agora — ou melhor… eu realmente sinto que sou querido por muitas pessoas, embora não saiba explicar de onde vem a simpatia que todos sentem por mim. Fui apenas mais um durante boa parte de minha tenra vida, só mais um, só mais um latino-americano qualquer. Passei a ter alguma autoestima quando fui banhado pelo raio de sol que é a sua neta. — daquele segundo em diante, pude notar que não haveriam maiores questionamentos sobre minha lealdade para com Aydée. Armas baixas, a batalha se acabou com uma série refinada de pequenos golpes, pensei eu.
Voltamos todos à sala de estar após o jantar. Todos embalados por boas conversas e assuntos interessantíssimos. Já me sentia totalmente integrado ao contexto familiar. Estávamos, Aydée e eu, sentados em um confortável canapé e discutindo temas apropriados ao momento.
Aos poucos, um a um foram se retirando. Primeiro foi a amiga de Aydée, que agradeceu a toda a hospitalidade e se dirigiu ao quarto de hóspedes. Depois foi a avó, mas que antes de sair, disse a todos em alto e bom som — E que tal se o Aldir dormir aqui essa noite? Está escuro demais para um jovem zanzar por aí. Há mais um quarto de hóspedes, não é mesmo? — todos se olharam com certa surpresa, eu mesmo estava prestes a declinar o convite em prol de todo trabalho que tive para me apresentar como um jovem decente.
— É uma boa ideia — disse a mãe, me surpreendendo — Aldir provou ter ótimos modos, não vejo problema em deixá-lo aqui esta noite. Telefone para seus pais, Aldir, explique a situação, me chame se for necessário, dou total consentimento.
— Também concordo — disse o pai com um tom de voz indeciso entre hospitalidade e amargor.
— Eu não sei se devo, digo… não seria adequado.
— Bobagem, eu mesmo telefono para seus pais, pode ser? — disse Carlos, agora em tom mais conformado.
— Tudo bem, agradeço imensamente o voto de confiança.
Passados alguns minutos, Carlos retorna a sala de estar e nos avisa de que tudo está de acordo. A mãe de Aydée reforça o consentimento e se recolhe junto com a avó. Aydée se despede de mim, ficando apenas Carlos e eu.
— Aceitaria um Hollywood? — Me perguntou Carlos.
— Obrigado, mas não fumo.
— Eu fumo apenas após as refeições, como um digestivo — Acendeu um cigarro e fumou pacientemente. Antes de terminá-lo, me olhou seriamente e disse — Peço desculpas pela minha reação agora a pouco sobre seu convite para dormir aqui, é que não imaginava que as coisas pudessem correr tão rapidamente. Mas lhe asseguro de que tudo o que foi dito esta noite, é verdade. Você é um homem decente, e é bem vindo a esta casa e a esta família. Se assim você quiser, é claro.
— Nada me trará mais prazer, senhor Carlos.
— Pois bem então… vamos dormir, um dos serviçais virá daqui a pouquinho para levá-lo até os aposentos. Boa noite, até amanhã, Aldir. — Jogou a guimba do cigarro na lareira e se foi na escuridão da casa.
Aguardei alguns minutos até que um dos serviçais viesse me apresentar as acomodações. Neste curto espaço de tempo me vi refletindo sobre o voto de confiança que me foi dado pelo senhor Carlos. De uma forma ou de outra, eu sabia que sua fala havia expressado sua mais profunda vontade protetora sobre a primogênita. Fui levado através de um corredor escuro até uma escadaria de dois lances. À cada degrau pisado, um baixo sinal sonoro cintilava em minha mente. Como um gotejar indesejado durante uma noite de leve sonolência, não conseguia me decidir entre acatar as normas familiares, ou executar indiscriminadamente meu plano inicial. Esperava que, ao chegar no final da escada, já teria tomado uma decisão, mas não consegui. Percorremos um longo corredor repleto de pesadas e exuberantes portas de mogno, por certo uma casa em que até mesmo o mais simplório cinzeiro já completara quatro vezes a minha idade. Cada fibra, do telhado ao alicerce, foi feita para durar eternamente, inclusive a família. Meu quarto era no fim do corredor, junto a uma imensa janela enluarada que despia o meu inconsciente. Abri a porta, acendi as luzes e tratei de me acomodar.
Já era tarde o suficiente para abrir mão de minhas vontades. Estranhamente contente com o desfecho de tudo, preparei a cama, apaguei as luzes e me deitei para descansar. Não sabia dizer qual daquelas portas me levaria até Aydée, por isso julguei que meu bote poderia ser dado em um momento mais oportuno, um onde a pressão de seus entes não seja capaz de envergar e estilhaçar meus ossos.
Ouvi um pequeno estalo metálico, era a maçaneta sendo girada. Acendi o abajur do criado-mudo para ver quem se aproximava, embora, é claro, já soubesse a resposta. Sim, era Aydée, entrou de forma discreta como uma gata no cio, cada movimento tramado para não emitir som algum se não o da maçaneta. Seus olhos fixos em mim desde que adentrara o quarto. Me levantei instantaneamente da cama, meu sangue passou a pulsar em um ritmo pontual. Ela vestia apenas um roupão de veludo negro com acabamentos dourados. Me aproximei de seu corpo sem dizer uma única palavra. Seus olhos consentiram minhas maiores perversidades. Desamarrei seu roupão que, devagar, se soltou e caiu ao seus pés, acariciando seu corpo. Me pus de joelhos diante dela para, enfim, tomar aquilo que vim buscar. Minha boca encontrou seu sexo e o sabor resultante foi o suficiente para me esquecer de absolutamente tudo o que havia prometido na última hora. E, daquele momento em diante, praticamos atos que fariam qualquer anjo ser expulso dos céus por muito menos. Horas após, nos deitamos para finalmente descansarmos, as espessas paredes amadeiradas eram cúmplices e testemunhas de posições feitas enquanto o diabo me sussurrava ao ouvido.
Exaustos, adormecemos um ao lado do outro. Inocentemente, acreditei que minha missão estava cumprida, não seria mais necessário articular tramas infindáveis, pelo menos por enquanto. Porém, assim que meu navio atracou no porto dos sonhos, me vi cercado de alucinações que foram me devorando aos poucos. Cada alucinação me causava memórias de coisas jamais acontecidas. Me vi em um futuro aparentemente breve, apertando a mão do senhor Carlos, me parecia que éramos sócios, talvez. Seu rosto era a felicidade pura. Um flash de luz surgiu e fui transportado a um casamento finíssimo na Abadia de Alcobaça, eu estava no altar e minha noiva se aproximava, era Aydée em um vestido que mais parecia uma mortalha. Novamente o flash, dessa vez me via com mais ou menos 40 anos, crianças ao meu redor que mais pareciam meus filhos, uma jovem moça com quase a mesma idade de Aydée no mundo real, por certo nossa filha mais velha.
Mais e mais alucinações foram brotando em minha mente, passei a me sentir sufocado por aquelas falsas imagens. Sabia que aquilo era um sonho, me belisquei várias vezes para tentar acordar, mas nada funcionava. Saí correndo do lugar onde estava, fui à rua e me deparei com um mundo que certamente não é o meu. Com o coração palpitando, tentei encontrar ajuda, até que vi um guarda distraído cruzando uma esquina. Gritei por socorro e ele veio ao meu encontro, perguntou o que estava acontecendo, gritei a plenos pulmões.
— Essa não é a minha vida. Não é meu mundo, não são minhas responsabilidades. Não sou eu! E não é o que EU quero — O guarda não me entenderia, mas ao menos me levaria para algum lugar, nem que fosse para uma cela.
— Não é o que você quis, mas é o que conseguiu com sua ambição. Achou que fosse malandro o suficiente, mas se embrenhou em uma teia da qual jamais fugirá. Quando menos esperar, a viúva negra o devorará vivo — Disse o guarda com uma voz tão gélida e olhos feitos daquela lua que ultrapassa a alma.
— Preciso sair daqui — Gritei e tentei me afastar do guarda, mas foi em vão.
— Ninguém sai impune desta, nem da outra vida — Disse o guarda enquanto me dava um certeiro safanão.
O golpe me levou imediatamente de volta ao mundo real, acordei extremamente suado e concordando com a veracidade daquilo tudo. Olhei para Aydée, que deveria estar dormindo ao meu lado, mas que na verdade me observava com grandes olhos maliciosos, enluarados como se tivesse estado naquele outro mundo observando tudo o que lá se passava. Se aproximou do meu ouvido e me disse algo com imensa volúpia.
— Teve um pesadelo, foi?
Não tive dúvidas, de alguma forma, aquela noite de prazer havia me ligado a ela de formas muito além do mundo carnal.
— Aydée — Disse a ela enquanto ainda ofegava — Aydei, Aydemos… e estamos dando.
[FINAL]